sexta-feira, 22 de março de 2024

Contos

Ontem a Universidade de Fortaleza - UNIFOR, completou 51 anos(1), e ainda dentro dos festejos de seus 50 anos, entregou a premiação bianual de Literatura. Participei com três contos. Participaram mais de 900 trabalhos, infelizmente não tive a graça de ter a minha inspiração premiada. Deixo meus parabéns para todos os participantes e aos 30 agraciados com a participação no livro editado pela instituição universitária.

Agora aqui, publico os contos inscritos no evento.

1. UNIFOR. Disponível em: <https://unifor.br/> Acesso em : 22 mar 2024.


NAQUELES DIAS

Hoje ao acordar senti um arrepio, desses que começa no pescoço e desce pela espinha e quase não tive coragem de pôr os pés nas sandálias, uma vontade imensa de deitar a cabeça no travesseiro e voltar a dormir. Todavia, a obrigação diária de cuidar de mim e da pessoa que escolhi viver, falou mais alto. São 04:30 h, o dia está só começando.

- Vamos lá! É hora de levantar ir ao banheiro para me preparar, em seguida café da manhã!

O ônibus estava mais lotado que o normal e como sempre acontece nesses dias, tive que fazer todo o percurso sem sentar, com o rosto quase enviado nas axilas de alguém, que também se esforçava para não perder o equilíbrio com os solavancos provocados pela pressa do motorista e seus freios bruscos que poderiam ser evitados.

- Finalmente cheguei, graças a Deus!

Pé direito depois do portão da fábrica, sinal da cruz e uma oração…

Paramentado para o trabalho. - Esqueci as luvas! - Volto correndo ao vestiário para pegar o equipamento no meu armário. - Não quero receber uma advertência! - Cruzo então com o meu chefe de sessão que me olha atravessado. - O que houve, penso! Não estou atrasado!

Linha de produção. Meu chefe, com cara de poucos amigos, avisa que recebeu orientação da administração superior que temos que aumentar a produtividade em 3%, a cada quinzena até o fim de ano. Caso contrário haveriam cortes de pessoal.

Todos alucinados e trabalhando feitos loucos, no pensamento, a possibilidade de uma IA assumir o posto atualmente ocupado por um ser humano que sua para sustentar a família.

Desequilíbrio, tombo. Cilindro de ar comprimido que balança. Pancada na perna esquerda.

Resultado… Enfermaria. Dor insuportável e pensamento que não para quieto. - O que vai ser de mim e da minha família?

Primeiros socorros recebidos e sigo em uma ambulância para um atendimento de emergência para engessar a perna.

Acidente de trabalho. Ao voltar terei estabilidade por doze meses. Uma dor que de certa forma compensará, mas não receberei os incentivos de produtividade.

Naqueles dias é melhor rezar e agradecer a Deus pela proteção, por não ter resultado em coisa pior e por meus colegas de trabalho estarem bem. Dos males o menor. Agora descansar em casa por, pelo menos, um mês. Avaliação médica e fisioterapia.

Agora vou curti os momentos com minha companheira e meu cachorro quer minha atenção.


NA SAÚDE E NA DOENÇA

Conviver com uma pessoa que apresenta transtorno de personalidade, com variação de humor ao correr do dia maior que o normal, e muitas vezes dando a impressão de se tratar de pessoas diferentes, no qual até esquece de ações e palavras que machucaram o outro… Seguido de algumas crises de ausência. É necessário muito equilíbrio emocional!

Assim tem sido a minha rotina no correr de quase seis anos. Era novembro de 2017 quando se desenvolveu o primeiro episódio. A todo momento eu sendo acusado de algo que nem sabia do que se tratava.

Vem cá! Bebe essa água, está com um gosto estranho! - Eu bebo um pouco da água e digo que para mim não tem nada de estranho. - Como não!? Café não tem gosto nem cheiro de café, a carne que eu como não é de gado, sabe lá Deus que carne é essa!?

Eu já ficando sem ação e sem saber o que dizer e sem entender o que se passava! Foram dias difíceis e inexplicáveis.

Uma semana depois ela passa por mim sem roupa, toda depilada, o que não era comum… Volta já vestida. - Viu só? Raspei tudo! - Respondo que ela tem que se sentir bem como achar melhor. E olhando para mim com um sorriso irônico comenta. - Ontem fui com minha irmã num médico amigo dela, para fazer um exame, para verificar com o que estou sendo envenenada.

Nesse momento meu pensamento deu mil voltas querendo entender o que ela quis dizer. - Precisei me depilar, já que uso química no cabelo, e era preciso cabelo sem agressão.

Ao anoitecer passa a se comportar ainda mais estranho, tudo que queria comer ou beber pedia que eu experimentasse antes, já impaciente e num tom mais elevado de voz perguntei o que ela estava insinuando. - Insinuando não, estou afirmando! Você quer me ver morta! Fico com essas dores na barriga e falta de ar insuportável! Quero ir para o hospital agora.

Troquei de roupa enquanto ela se arrumava e a levei para o hospital mais próximo. Na emergência gritava com as enfermeiras e médicos, dizendo que todos eram comprados por mim. - Você é amiguinho de todos aqui, por isso me traz para esse hospital toda vez, eles ficam dizendo que eu não tenho nada.

Pediu para ir à casa da irmã, já passava da meia-noite. Eu estava sem comer e a glicemia já estava baixa e isso me afetava, pois sou diabético. Já não raciocinava direito e não acertei o prédio da irmã. - Me leva para outro hospital! - Gritava ela. - Comentei que era melhor voltar para casa. - É faz isso! Você quer acabar comigo!

Antes de entrar com o carro na garagem ela desce e vai bater na casa dos vizinhos da frente. Já era por volta de três e meia da manhã. - Me chama um táxi para me levar pro médico, que ‘esse bosta’ não sabe me levar. - A vizinha desorientada e com sono, olha para mim sem entender nada e comenta que não conhece nenhum taxista. - Ela então vai para o vizinho da frente, e eu ainda mais desorientado com tudo. - Fulano! Me leva para o hospital tal que eu estou passando mal, e meu marido não sabe onde fica. - Fulano solícitou, mais estranhando a situação, diz que leva com o maior prazer, mas sem entender a situação.

No hospital mais exames e espera. Amanhece o dia e os resultados dos exames dizem que está tudo bem. - Você comprou esses aqui também! - Eu tento argumentar, mas ouço apenas mais gritos e distratos. Vai ao banheiro. Após quinze minutos não volta. Solicito a uma moça da recepção para verificar no banheiro se ela estava bem. - Senhor! Tentei abrir a porta mas não consegui, ela está deitada no chão. - Vou checar, e lá estava ela! No chão do banheiro se recusando a sair. Não teve médico, enfermeira, segurança que conseguisse argumentar, e não dava para forçar a porta, pois ela estava com a cabeça encostada na mesma.

Liguei para irmã médica, mas não consegui falar e a outra irmã que atendeu foi ao hospital e consegui convencê-la a levantar e ir para o apartamento dela. Chegando lá ela estava nervosa, alegando mil coisas contra minha pessoa. A irmã pediu que ela fosse deitar um pouco e descansar. Surtada, ficou nua no quarto, deitou no chão, urinou onde estava. Um pouco depois a outra irmã chegou, a médica. - Está surtada, tem que internar.

Em um terceiro hospital, após várias tentativas de conter para os exames ela se acalmou.

Veio o diagnóstico. Bipolaridade e sabe-se lá o que mais. Fazia uso de medicação para insônia, uma salada mista que ela abusou. E numa consulta com uma médica dermatologista, a mesma foi aconselhada a parar com as medicações, porque estava edemaciada, com pele seca…

Havia parado abruptamente com todos os remédios. Daí síndrome de rebote. Agravado com um quadro psicológico e revivendo memórias do passado.

Psiquiatra. Tratamento. Mais remédios.

Seis anos depois. Várias crises se seguiram. - Eu não sou louca, nem esquizofrênica para tomar esses remédios.

O pior paciente é aquele que não aceita a doença. Sofre quem está mais próximo, seguida de toda família. Muita tristeza e aperto no coração de todos.

A única coisa que salva é a oração. Fé em Deus e a esperança que a tudo melhore e que aceite a terapêutica. Na saúde e na doença! E a tristeza vai ficando.


DIFERENÇAS E SIMILITUDES

Jonas, menino, cresceu e aos poucos foi se transformando, aos dezoito anos começou a transição, passou a utilizar terapia hormonal para mudar de gênero. Agora aos vinte sete anos é Joana, graças a estrogenoterapia. Uma mulher transgênero com todos os direitos que a lei permite.

Catarina, menina, realizou o caminho inverso de Joana. Com o tratamento hormonal se tornou Carlos.

Violência e estupro no seu corpo, vocês vão ver eu vou pegar vocês!1 Nessa balada de faroeste viveram esses dois. Ilusões e desencontros. Brigas e reparações. Um mau trato aqui, outro acolá. Quimeras e axiomas. “Duas vidas divididas… Fica o feito e o desfeito, o carinho e o cuidado.2 Até então nunca se encontraram, mas viveram vidas vividas, com alegrias e tristezas.

Um dia os dois se cruzam. Ambos professores de uma universidade. Casualmente em um evento social se esbarraram e trocaram ideias. - Olá, tudo bem! - Joana com o olhar tímido encara Carlos. - Oi! Desculpe o mau jeito! Você ensina aqui também? - Olhares trocados, sorrisos insinuações e o improvável. Paixão! Carlos e Joana. Transgêneros que se apaixonam. “Drão, o amor da gente é como um grão… Ressuscitar no chão nossa semeadura!3.

O improvável e talvez o impensado se fez flor e germinou.

Só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo4.

Causando estranheza, para alguns ignorantes, caminham os dois pelos jardins quando podem se encontrar entre uma aula e outra. Bom mesmo é a liberdade de um beijo roubado, o oferecido é doce e o compartilhado melhor não há. “Haja fogo, haja guerra, haja guerra que há, eu também quero beijar5.

1. URBANA, Legião. Faroeste Caboclo. In: As quatro estações. Disponível em: Faroeste Caboclo guitar pro tab by Legiao Urbana @ musicnoteslib.com. Acesso em: 27 nov 2023.

2. ALCEU, Valença. Amor que fica. In: Leque moleque. Disponível em: Amor Que Fica - Alceu Valença – LETRAS.MUS.BR. Acesso em 27 nov 2023.

3, GIL, Gilberto. Drão. In; Perfil. Disponível em: Drão - Gilberto Gil - Cifra Club. Acesso em 27 nov 2023.

4. LISPECTOR, Clarice. Das vantagens de ser bobo. in: A descoberta do mundo. Rio de janeiro, Editora Rocco, 1999. Disponível em: Bobo - Pensador . Acesso em: 27 nov 2023.

5. GOMES, Pepeu. Eu também quero beijar. In: Warner 30 anos. Composição de: Fausto Nilo, Moraes Moreira e Pepeu Gomes. Disponível em: Eu também quero beijar - Pepeu Gomes - Cifra Club. Acesso em: 27 nov 2023.

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